Especial 203 anos: Triângulo Mineiro era terra de Índios Bravios
Não existiam espaços vazios quando os portugueses chegaram ao Brasil e nem 300 anos depois, quando as expedições começaram a entrar no sertões do Brasil Central para explorar o territórios mais profundos. A região onde seria Uberaba era habitada por vários povos indígenas, que lutaram para proteger suas terras mas não conseguiram se contrapor ao poder do exploradores. Milhares morreram e outros milhares se mudaram cada vez mais para o sertões, criando novos núcleos e esperando o dia em que novamente teriam de lutar, morrer e, inevitavelmente, se mudar. Nessas breves pinceladas, Robert Mori, doutor em História pela universidade Federal de Uberlândia, nos revela, em síntese, fragmentos dessa história.
Caiapós tinham grande aldeia no rio Grande
A atual região do Triângulo Mineiro (antigo Sertão do Gentio Cayapó e Sertão da Farinha Podre), era habitada por um povo indígena que na documentação do século XVIII passou a ser conhecido como “Cayapó”. Eles praticavam a agricultura em suas roças, principalmente o milho e diversas espécies de batatas. Tinham vários rituais e guerreavam contra outros povos indígenas e os luso-brasileiros (guerras externas) e também entre si (guerras internas). Construíam suas aldeias em formato circular e espalhadas pelo sertão. Dependendo do período do ano – seca ou chuvas –, eles se dispersavam ou se reuniam em grandes aldeias. Suas armas eram grandes arcos, com flechas compridas e grossas, além de uma borduna, habilmente utilizada por eles em seus ataques furtivos. Nos anos 1780, foi mencionada na documentação da capitania de Goiás, a existência de uma grande aldeia próximo ao Rio Grande.
No “Mapa geral dos limites da Capitania de Goiás”, confeccionado em 1751, de autoria de Francisco Tosi Colombina, é possível perceber o “Sertão do Gentio Cayapó” e, na área triangular, o atual Triângulo Mineiro
Caiapós reagem às invasões com flechas e bordunas
Com o constante transitar de tropas pelo Caminho dos Goiases e a invasão dos territórios Caiapós, esses indígenas passaram a promover ataques aos viajantes, sítios, fazendas e pequenos arraiais que então se formavam. Esses ataques causavam a morte dos lusobrasileiros e de animais, além de incêndios e destruições de casas e fazendas. Na região da atual cidade de Uberaba, no ano de 1728, foi concedida pelo governo paulista uma sesmaria a um rico homem chamado Antônio de Araújo Lanhoso, que ficava nas adjacências do atual Instituto Federal do Triângulo Mineiro, próximo à Univerdecidade. Em 1744, o sítio do Lanhoso foi destruído pelos Caiapós após um severo ataque. Os Caiapós buscavam com suas incursões guerreiras a vingança pelos ataques feitos pelas bandeiras às aldeias, que resultavam em mortes e capturas dos sobreviventes como escravos, a defesa do seu território que era constantemente ocupado pelos lusobrasileiros, além da rapinagem de objetos de ferro.
Coroa contrata sertanista para combater ataques dos Caiapós
A atual região do Triângulo Mineiro, até o ano de 1748, foi parte integrante da capitania de São Paulo. Entre 1748 e 1816, ficou sob jurisdição da recémcriada capitania goiana, quando foi então anexada ao território de Minas Gerais. Com os constantes ataques dos Caiapós, os moradores de Goiás clamavam ao governador buscando uma solução. Em 1742, foi então contratado o sertanista Antônio Pires de Campos que capitaneava um exército de indígenas Bororo e Parecis, oriundos do Mato Grosso, além de mestiços. Ele atacou aldeias Caiapós. Em suas andanças, Pires de Campos deve ter chegado ao atual Triângulo Mineiro, pois seis anos depois, a pedido dos indígenas que administrava, ele edificou um aldeamento indígena às margens do Rio das Pedras, que ficava em território da atual cidade de Cascalho Rico.
Detalhe do “Mapa da capitania de S. Paulo, e seu sertão em que se vem os descobertos, que lhe foram tomados para Minas Geraes […].” Neste mapa do século XVIII é possível perceber, na área que hoje corresponde ao Triângulo Mineiro, o Rio das Velhas ao centro, o curso do Rio Uberaba – identificado pelas setas – e, na parte superior (no canto direito), o aldeamento de Rio das Pedras, descrito como “Arraial dos Bororos”.
Caiapós mantêm os ataques e geram nova reação da Coroa
Como os ataques Caiapós continuaram entre os anos de 1742 e 1748, os moradores de Goiás mais uma vez pediram ajuda ao governador, que narrou os acontecimentos ao rei de Portugal. O monarca, então, autorizou a guerra justa aos Caiapós, que deveria ser feita novamente a partir da ação de Pires de Campos. O contrato foi assinado em 1748, tendo o sertanista se comprometido a criar um aldeamento em Rio das Pedras, local em que passou a residir com os Bororos, Parecis e mestiços, sendo o responsável por sustentá-los. A guerra aos Caiapós foi uma guerra entre indígenas, motivada pelo baixo custo, pelos conhecimentos do ambiente dos Bororos e Parecis, a facilidade com que encontravam alimentos e pelas armas que utilizavam: arcos e flechas, mais eficientes que as armas de fogo, pois essas não poderiam ser molhadas, uma vez que não funcionavam de forma eficiente. As lutas encabeçadas por Antônio Pires de Campos duraram até o ano de 1751, quando ele morreu em decorrência de malária na região de Paracatu.
Portugueses recrutam índios para combater os Caiapós
Entre os anos de 1748 e 1806, além de Rio das Pedras e Santa Ana do Rio das Velhas, outros aldeãmentos e sítios indígenas foram criados no atual Triângulo Mineiro, ao longo do Caminho dos Goiases: no sentido norte-sul eram eles: São Domingos, Estiva, Piçarrão, Boa Vista, Rocinha, Lanhoso, Uberaba Falso e Baixa. Eles tinham a função de fornecer guerreiros indígenas contra os Caiapós, servir de pouso para as tropas e viajantes, e como locais de abastecimento de mantimentos. Foram oito os povos indígenas trasladados pela Coroa portuguesa no século XVIII para esses núcleos: Guaranis (de São Paulo), Bororos e Parecis (Mato Grosso), Curumarês, Carajás, Tapirapés e Javaés (Ilha do Bananal), além dos Xacriabás (atual Tocantins). Por meio de casamentos entre indígenas e nãoindígenas (principalmente negros) e pelo processo de etnogênese, foi conformada uma população que se reconhecia como indígena e pelos luso-brasileiros era reconhecida como tal.
Major Eustáquio ganha carta branca para domar os sertões
Entre a primeira e a segundas décadas do século XIX, o capitão de Ordenanças Antônio Eustáquio da Silva e Oliveira – considerado o fundador de Uberaba – empreendeu expedições para conhecer o sertão a oeste do arraial do Desemboque. A ele foi concedida uma autorização do governo goiano para capitanear a ocupação não indígena do atual Triângulo Mineiro. O potentado iniciou um paulatino processo de ocupação das terras dos aldeamentos indígenas, concedendo sesmarias. Até o ano de 1821, as terras entre os Rios Grande e das Velhas foram ocupadas por fazendas que se dedicavam à agropecuária, sendo os indígenas expulsos para o Julgado de Araxá, entre os Rios das Velhas e Paranaíba. Tais eventos não foram vivenciados pelos indígenas de forma pacífica, pois eles contestavam as tentativas de expulsão, incendiavam as casas dos posseiros que invadiam as suas terras e chegaram inclusive a enviar um documento ao governo mineiro em que relatavam as tentativas de espoliação de suas terras.
Alemão teve má impressão do Major
A leitura das fontes arquivisticas do século XIX demonstram como se deu a espoliação das terras indígenas e os interesses envolvidos em tal prática. Existe até um documento de autoria do fundador de Uberaba, do ano de 1827, em que ele narra suas ações. Em 1816, o viajante alemão Eschwege, em seu livro “Brasil, novo mundo”, nos relatos sobre sua passagem pelo atual Triângulo Mineiro, descreveu a má impressão que teve de Antônio Eustáquio, assim como o seu interesse em expulsar os indígenas. Depois dos anos 1850 são pouquíssimas as informações sobre os indígenas aldeados na região. Será que eles foram expulsos para regiões no entorno do atual Triângulo Mineiro? Ou se integraram às fazendas e arraiais como trabalhadores? Ou então se casaram com não indígenas? É bastante recorrente nas memórias dos moradores do Triângulo Mineiro a presença de uma avó ou bisavó indígena “pega no laço”. Seriam elas descemdentes desses indígenas aldeados ? Futuras pesquisas podem, talvez, elucidar tal questão.